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segunda-feira, 31 de maio de 2010

Diálogo

- Sabe amigo, é com tristeza que lhe digo que jamais me apaixonarei, posto que, um dia, já me apaixonei.

- Cuidado com o que diz agora, por uma dor que sofrera outrora. Digo-lhe que cairá novamente ao fundo, pois é o que acontece a todo mundo.

- Comigo não, meu irmão. Não sabe o que passei, então. Caí de um lugar muito alto em um chão duro, duro como asfalto.

- Cair, todos nós caímos, e à vida, continuamos seguindo. Mesmo com o escuro envolto, e digo mais: seu problema não é maior que o dos outros.

- Quer apostar que, novamente, não irei me apaixonar? Ofereço-lhe um milhão, pois, daqui vinte anos, terei o dinheiro na mão.

- Eu aceitarei a sua aposta, daqui vinte anos, estará com a mulher que gosta e, mostrará no olhar a beleza que é se apaixonar.

- Isso não acontecerá mais comigo. Pensarei mais em mim. Abrigo. Tentar ser uma pessoa melhor, desatar de mim, todos os meus nós.

- Sendo uma boa pessoa, verá que o coração se perdoa. Tendo um bom semblante, atrairá pessoa interessante.

- A lei da atração, comigo, não cola. Aprendi quando saí da escola. A vida é bem diferente quando o que acontece é com a gente.

- A vida é um reflexo do que decidimos. De tudo que vivemos e vimos. Mas ela nunca espera em tecer a vontade que nos cega.

- Mas aprendo vendo outros errando, e, contra a vida, vou me armando. Tenho tudo pra não ceder pelo que ela me faz sofrer.

- Pois eu aposto contigo, daqui vinte anos, se eu estiver vivo, encontrá-lo-ei na rua vivendo, e você me dirá sorrindo “estou te devendo” e eu responderei bastante alegre “está feliz? Se sim, então já pagou o que me deve...”.

Rafael Albuquerque

Rotina Roubada

Ela vinha à padaria todos os dias. A rotina era a mesma irremediavelmente. Pontualmente as nove, o sol ainda não castiga nesse horário. Ela entrava a passos curtos, pedia o café – sem açúcar, por favor -, sentava-se a mesa devagar, conversava sozinha, tirava um papel do bolso, lia-o, chorava, terminava o seu café, levantava-se e ia embora com o rosto molhado. E eram assim todos os dias. Todos, menos hoje. Hoje ela não veio até a padaria. Olhei para fora do estabelecimento, carros de polícia, um bombeiro, e um saco preto sobre o chão. O saco cobria um corpo, o dia passa e eu sei que a encontrarei novamente, mas não por agora.

Infância - Primeira versão

Faz tempo que eu não venho aqui, ainda mais com minha mãe. Costumava brincar nesse parquinho que fica de frente à casa da vovó – hoje não mais aqui - com uma grande amiga. Ela, sem deixar vestígios, parou de vir. Costumava ser logo após a aula. Brincávamos no escorrega, na gaiola, na areia, lembro-me – não sei o porquê - de que ela não gostava de brincar na gangorra. Ela adorava brincar de boneca. Ela não tinha nenhuma – apesar de se vestir como uma – e eu a emprestava sempre. Ela queria sempre brincar com a minha boneca mais antiga, a mais velha, mas eu nunca deixava. Era uma boneca muito antiga e foi presente da vovó. E logo que essa minha amiguinha sumiu, a minha boneca sumiu também.

Lembro-me também de que fui correndo para a casa da vovó, dizer-lhe que minha boneca foi roubada. Ela ficou triste, pois disse que era uma herança de família. Perguntei o que significava a palavra “herança” e ela me explicou. Fomos então até o porão, pois ela disse que teria outra boneca que poderia me dar.

Entrar neste porão após tantos anos ainda me dá arrepios... Estava cheio de poeira e lençóis cobrindo móveis velhos. Mas hoje, deparei-me com algo que não estava preparada.

Hoje, vi minha amiguinha pela última vez. Pintada num quadro pendurado na parede em um retrato de família. Perguntei para a mamãe quem era ela, e respondeu que era uma tia-avó dela que morreu quando tinha a minha idade. Disse também que aquela boneca que a vovó tinha me dado, era dela e que ela tinha perdido pouco antes de partir. Mamãe ainda comentou que achou engraçado a boneca aparecer no retrato, pois quando foi pintado, ela já tinha perdido. A vovó contou essa história pra mamãe que disse que poderia jurar que a boneca não estava no quadro.

Contei pra ela toda história da minha amiguinha que roubou a boneca, mas a mamãe disse que não se lembrava de nenhuma amiga minha. E que achava engraçado – apesar de se assustar no início – eu ficar conversando sozinha no parquinho.

A Pensão

Eu não queria passar por ali. Mas era o único caminho até minha casa. Já se passava das três da manhã e eu estava a pé. Sim, a pé, pois, não poderia dirigir depois de alguns cálices de vinho tinto... Nossa... Que vinho delicioso. A festa nem estava tão boa... Mas o vinho... Ah! O vinho...

Mas eu não queria passar por ali. Essa rua é muito escura e essa casa da esquina me dá arrepios.

Fui andando lentamente, tentando ensurdecer os meus passos para que eu passe sem ser percebido. Mas, quando eu estava exatamente em frente à casa, à aquela casa, ouvi um grito horrendo de dor. Algo que vinha de lá de dentro. Apertei o passo, acelerei o meu caminhar. Quando vi, já estava correndo. Mas parei. Parei e pensei “é alguém, certamente, precisando de ajuda. Não posso deixar que um medo de algo que não existe possa me impedir de ir ajudar.”

Volvendo em direção à porta, franzindo a testa, abri a porta que não estava trancada, apenas encostada. Entrei lentamente, tentando manter o silêncio. Mas a porta, pesada, soltou-se de minha mão, batendo e fazendo um barulho ensurdecedor.

A casa tinha o aspecto de bem velha. Bem antiga. Móveis com lençóis, espelhos e vidros quebrados... Inclusive os das janelas. Poeira. Muita poeira... Poeira por toda parte...

Os gritos que eu ouvia lá de fora, agora, vinham da cozinha. E ficavam cada vez mais horripilantes, fazendo-me arrepiar a nuca, pernas e braços. Continuei seguindo lentamente... E, ao me posicionar à porta da cozinha, vi uma mulher de costas, como quem estivesse preparando algo, cortando sobre a pia e resmungando bizarramente, não dava pra entender. E, quando eu ia dizer algo a ela, ouvi um barulho estranho vindo da sala que eu acabava de deixar... Voltei. Um homem – muito bem vestido – quebrava pratos, copos e taças... E parou. Parou, olhou bem fundo em meus olhos, como quem observava minha alma. Sussurrou: - Corra!

Logo após dizer essa única palavra, ele simplesmente sumiu na minha frente... Como água que evapora... Voltei, então, em direção a cozinha. Ela não estava mais lá. Ele estava. Sentado sobre a pia, segurando algo. Disse murmurando: - Seu tempo está acabando...

Ele se levanta, me entrega uma foto. Uma foto muito antiga, uma foto de família... Era fácil reconhecê-lo. Ele era o patriarca. A mulher da foto parece a da cozinha... Eu a vi apenas de perfil, não tinha como ter certeza. Havia, ainda, duas crianças na foto. Duas garotinhas. Provavelmente, filhas do casal. Engraçado... Todos sorriam...A não ser a mulher... Ao olhar para frente, para devolver a foto, ele já não estava mais lá. A pus no bolso e saí rápido dali. Estava louco pra sair daquele lugar tão macabro.

Tremi. O medo tomava conta de minha espinha e a fazia fria. Congelante, eu diria. Corri para a porta, tentei sair, mas, quando abri a porta, não havia a saída. Era como se outra sala fosse aberta. Uma sala bem grande. Mas tenho certeza de que foi a porta pela qual entrei. Eu tenho certeza. Desesperei-me, corri, procurando outras portas... Quartos, quartos e mais quartos. Quando abri uma das portas, mais um quarto... Mas esse era diferente, ele estava sentado sobre o criado mudo. Olhei para ele, e fui a sua direção... A porta se fechou. E ele disse:

- cuidado. Ela...

- Por que deveria ter cuidado?

Ele aponta para dentro do criado mudo e sai de perto... Abro a primeira gaveta, tem uma faca. Uma faca pequena, mas e corte bem afiado.

Ele se dirige para a porta, como quem vai embora... Suas costas... Sua roupa estava cortada... Sangue por todas as partes de suas costas... Um sangue sujo, coagulado, como se, há anos, estivesse cortado...

Ele continua andando... Atravessa a porta - sem abri-la...

Saio daquele quarto assustado, abro a porta, e fujo... Procuro a porta certa... Correndo, como um louco, abrindo todas as portas possíveis... Em outro quarto, vi duas crianças brincando... Duas garotinhas... Cheguei um pouco mais perto... Os seus vestidinhos estavam com marcas de que foram queimados... Olhei para o rostinho delas... Meu deus... Elas estavam coberta por cinzas, com a pele toda queimada... E brincavam, como se não houvesse a dor... Elas sorriam... Olhei para o resto do quarto... Cinzas e mais cinzas... Elas me olhavam e apontavam para o armário... Eu não queria ver mais nada...

Fugi... Gritei muito, passei por outra sala. Havia um balcão... Agora eu tinha a certeza de que se tratava de uma pensão. Ouvi a voz daquele senhor novamente... Eu não o via... Mas ele dizia: - Ela está chegando...!

Eis que então, atrás do balcão... Ela já com outra roupa, também coberta por cinzas e com a roupa tosquiada, olha pra mim. Ela atravessa o balcão... se aproxima... Os pavores, o pânico, fazem com que eu não consiga me mexer... Ela se aproxima... Seus olhos têm a cor de raiva... E a sua boca sorria... Fechei os olhos, gritei muito, tapei o meu rosto com os braços. Até sentir aquela mão gelada sobre mim, tentando fazer com que eu tirasse minhas mãos sobre os meus olhos... E conseguiu...

Mas, quando eu olhei, era um senhor me oferecendo ajuda... Olhei para os lados, eu estava no meio da rua... Ainda era aquela rua, e era em frente àquela casa... Levantei-me com dificuldade, agradeci ao senhor que me ajudara. De certo, foi tudo da minha cabeça... De certo, o vinho trabalhou bem sobre mim... E segui em direção à minha casa...

Estou em frente a minha casa agora... E fiquei assustado... Quando coloquei a mão no bolso para pegar as chaves, pois senti um papel... Quando eu o tiro... Uma foto antiga de família... Um homem, uma mulher e duas garotinhas... Todos choravam... E só a mulher sorria...

Rafael Albuquerque

Rosas Vermelhas

Juro que não era de meu gosto. E, agora, só eu sei a treva que me fita. Sou sabedor de que fui o culpado. Perdi o comando do automóvel. E uma árvore inoportuna estava em meu caminho... Sinto-me amaldiçoado, funesto, maldito. O meu grande amigo-irmão sentava-se ao meu lado. Sei também que passei, por muito, o limite. Esse amigo permaneceu no coma por alguns dias. Eu saí incólume. Apenas algumas dores infernais de cabeça e dormência por todo o corpo. Fui à clínica enquanto ele ainda dormia. Falei com ele que fez gestos com a cabeça - tenho a certeza de que fui entendido naquela noite. Pedi o seu perdão e ele me deu. Mas... Desde que ele acordou que não se dirige mais a mim. Tentei chamar sua atenção, mas me trata com total desprezo. Sei que estava errado. Mas, ele não poderia guardar esse ódio, esse rancor por tanto tempo. Já desisti de falar com ele. Hoje, faz um ano que o desastre aconteceu. Ele saiu de casa, passou por uma floricultura, acho que comprou flores para a amada. Rosas vermelhas. Sempre lhe falei que eram as minhas preferidas. Dirigiu-se a um cemitério próximo daqui. Deixou as flores no túmulo de alguém. Estranho. Eu o ouvia. Ele, augusto, rezava... Sim... Ele rezava... Levantou-se. Dúbio, tentei lhe falar novamente o que sentia, afinal, já faz um ano. E era como se eu não existisse...

O mendigo das Estrelas

Aos gritos de socorro, um velho maltrapilho era carregado pelos homens de preto. Aquele shopping não era um lugar onde se poderia vagar normalmente com aqueles trajes. “Por que estão me levando? E para onde?” perguntava o velho.

Sem dizer uma palavra, o velho foi posto para fora do shopping.

Ninguém sabia com ele foi parar lá dentro... Nem ele mesmo poderia explicar...

- Houve algum engano... Não era para eu vir parar nesse planeta...

Ouvindo aquele reclame, um segurança daquele famoso shopping o segura pelo braço e o encaminha até a delegacia. Lá, o delegado começa a questioná-lo:

- Nome?

- Kaputzl.

- Eu estou falando sério, velho de merda!

- Por que eu haveria de brincar, senhor?

- E de onde você veio?

- Vocês chamam de Plutão.

- Tá me achando com cara de quê, seu mendigo?

- De um terráqueo, senhor...

Depois de muita surra, o delegado resolveu encaminhá-lo a um hospital psiquiátrico.

Lá nesse hospital, trataram-no como um louco perigoso. Deram os mais poderosos sedativos. Mas não adiantava. Seu nome ainda era aquela coisa difícil de dizer e seu planeta não era o nosso.

Os dias foram passando. As semanas foram passando. Uma grande rebelião no hospital foi iniciada por um colega de quarto. Várias pessoas morreram na grande queimada provocada pela queima dos colchões. Mas, sem maldade alguma, seu companheiro o culpou e ele não negou. Foi julgado e condenado na prisão de verdade. Só a morte lhe caberia, decidiu o juiz. Foi, então, no dia dezesseis de março que os preparativos da cadeira da morte foram iniciados. Havia três pessoas que sabiam de sua inocência. Uma era o verdadeiro incendiário, que agora comemorava sua total liberação de culpa. Outro era o policial que não importava qual dos detentos seria sacrificado. O último era o seu amigo da sela ao lado. Tentou ao máximo provar sua inocência até que foi impedido pelo próprio condenado.

- Deixe que me levem... Não tente impedir. Eu preciso ir. Aqui não é o meu lugar. Dizem que sou louco porque vim de um outro planeta e eles ainda não entendem. Milhões de pessoas morrem por ano por doenças, fome, pobreza e o mundo se junta contra o terrorismo. Deveria fazer o mesmo com esses problemas... Uma união que causará ainda mais mortes. Guerras e preconceitos nunca deixarão de existir aqui. Prefiro ir e não ver aonde isso vai dar.

Enquanto o amarravam em sua cadeira da partida, ele apenas repetia:

- Por favor, se não acreditam que não sou louco, ao menos deixem vocês de serem loucos!

A cadeira foi ligada e seus olhos estavam vendados para que não saltassem dos seus lugares, seus braços presos aos braços da cadeira evitavam que o corpo pulasse durante a eletrocussão. Um líquido branco lhe saía pelos olhos por debaixo da venda, sangue jorrava de vários lugares, difícil saber exatamente de onde... Seus poros se dilatavam horrendamente.

Todos os espectadores pareciam orgulhosos do que viam. Menos o seu amigo que gritava do outro lado da sala:

- Ele não é louco! Ele é inocente!

Mas há essa hora já não os interessava mais. A sentença já havia sido cumprida...

Não sei se por coincidência, mas naquele dia, uma estrela cadente rasgou o céu de uma maneira especial e sua calda laranjada gerava outras várias estrelas...

Rafael Albuquerque

Caminhando sobre a lua

Era um jovem bastante criativo. Viajava muito e, por isso, aprendera várias línguas. Seus pais sempre se preocupavam em suas viagens, pois, às vezes, demorava muito pra voltar. E sempre que voltava trazia grandes novidades dos lugares por onde passava, mas seus pais não o ouviam, não se interessavam por suas histórias. A preocupação era tanta que nem dava tempo de dar a atenção ao que queria dizer sobre tudo.

Conhecia bastantes pessoas nessas viagens, mas achava que não era o suficiente, pois seus pais sempre lhe apresentavam novos amigos que queriam saber sobre essas viagens. Contava-lhes tudo o que acontecia, com bastante entusiasmo. Não sabia o porquê, mas estes mandavam tomar remédios, mesmo não sentindo dor alguma. E dizia que seria muito perigoso se ele não os tomasse. Esses remédios faziam perder a vontade de viajar. Aliás, tirava a vontade de fazer qualquer coisa. Ficava triste num canto do quarto. Sem estar viajando e sem estar ali. Tinha muita vontade de ir à Lua. Mas esses remédios lhe tiravam o ânimo.

Certa vez, ele fingiu tomar os remédios. E, assim o fez por mais dois dias. Sua alegria voltara, mas sabia que não poderia contar pra ninguém. Estranho, mas eles não gostavam de vê-lo assim. Então, ele resolveu viajar. Realizar o seu grande sonho de infância. Conhecer a Lua. E ele o fez. Fez a sua tão esperada viagem. Ele conheceu a Lua. Uma viagem tão espetacular, que jamais quis voltar. Jamais voltou.

Rafael Albuquerque

Azul Real

Casados já há algum tempo, ele sempre fora apaixonado pela esposa, que se distinguia pela beleza dos olhos. Brigavam muito, porém, sempre, sempre que ele se deparava com aqueles olhos seu coração amolecia.

Jamais discordaria com o que ela o propusesse. Ao lado da mulher, tudo era iluminado. Ele sempre fora pacífico, amável e pulcro; ela, amarga, déspota; tudo deveria ser do seu jeito ou estaria tortuoso. Chegava a casa já no alvorecer, normalmente embriagada, e insultava-o. Ele se irritava, mas bastava sentir a presença daqueles lindos olhos cor-de-anil, que tudo se resolvia e estava bem.

Certa vez, chegara com marcas pelo pescoço e escoriações nos braços. Ele achou estranho e quis saber o que houve.

. Ela, então, desatarraxou o cabo de metal do rodo que estava na copa e bateu-lhe várias vezes, sem piedade. Enquanto o surrava - gritava: “Não é da sua conta... Você não manda em mim...”. Ele, mais forte, segura o cabo com uma das mãos e com a outra a esbofeteia. Ele, irado, prepara-se para golpear a mulher de sua história. Ela amedrontada, olhava-o com espanto, já que o marido nunca ousara violência. E ele, encantado por aqueles lindos olhos azuis... pede-lhe desculpas e cai em prantos... Nunca retrucou às provocações. Olhava para ele com espanto, mas, novamente, fora encantado por aqueles lindos olhos azuis. Ele a pede desculpas e cai em seu pranto.

As brigas eram constantes, porém certo dia, assistindo a um programa de TV, chega a mulher e a posiciona na frente - jogando sua bolsa sobre o sofá. Austera - grita e ofende-o com palavras rudes - dizendo traí-lo várias vezes por semana com diversos homens..

Ele, gentilmente, sem se preocupar com o que ela está dizendo - oferece-lhe uma colher do sorvete que está tomando. Ela estapeia borrando-o de creme. Ele ciente do acontecido, lambe a colher com raiva e aproxima-se dela com o pote de vidro onde estava o sorvete e acerta-o na fronte desacordando-a

Terno, abre o olho dela com paciência e posiciona com a colher abaixo do globo ocular e retira aquela esfera tão amada por ele, separando-as por completo do corpo. Ela ainda respirava e ele iniciou a desmembração de seu corpo com uma afiada faca de cozinha. Tudo foi cortado em pedaços menores e colocado no congelador. Sua esposa, aos poucos, se consumia no estômago das visitas que saboreavam um delicioso strogonoff - sua especialidade - servido com um vinho do bom... Seus olhos foram postos sobre o seu criado-mudo. Apontados para ele dia e noite. Agora, sim: "ela só tem olhos para ele...".

O amigo

Eu pensei ter arrancado o cabo do telefone para que ninguém me incomodasse no domingo de manhã. Entretanto, o telefone tocou. Levanto-me sonolento para atendê-lo. Era um amigo de infância, já não o via há alguns meses, mas era um grande amigo. Sua voz estava estranha, a impressão era a de que seu queixo batia de frio. Eu perguntei se estava tudo bem, e ele respondia “agora está!”. Ele me disse coisas lindas, lembramos da nossa infância, quanta travessura... Ele me chamou várias vezes de melhor amigo. E, de fato, ele também era o meu melhor amigo. Já o conheço há mais de vinte anos, e isso é muita coisa quando se tem menos de trinta. Ele dizia: - Liguei para me despedir! – achei estranho, ele sempre morou nessa cidade, e me criticou quando eu disse que eu sairia. Perguntei por onde ele estava e ele respondeu que estava num lago. Dizia que gostava muito de mim, que eu seria a única pessoa de quem ele se despediria. Pediu-me desculpas por tudo que havia feito, coisas de criança, eu nem me lembrava mais. Dizia que tinha sido ele que quebrara o meu taco de “Bete”. Mas não havia o que ser desculpado. Isso aconteceu há tanto tempo. Dizia também que ficaria com muita saudade, posto que eu seja o seu maior elo com o próprio passado. Ele disse que me esperaria por lá, mesmo quando falei que não poderia ser por agora, já que meu trabalho está bem pesado, e não tenho nem previsão de férias. Ele aceitou e disse, ao desligar, que me amava como a um irmão. Curioso, fazia muito tempo que não nos falávamos. Mais curioso ainda, ao soltar o telefone, lembrei-me de que havia sonhado com ele essa noite.

Peguei o jornal na soleira da porta e fui tomar o meu café. É assim que faço todos os domingos. Coloquei o leite na caneca e esperei a cafeteira fazer o seu serviço. Abro o jornal, uma foto me chamou muito a atenção e li a matéria. Aquele nome, eu não acreditei... O artigo descrevia um acidente que houve. Um carro foi encontrado bem ao fundo do Lago Cristal. O carro tinha um corpo dentro. Eles foram retirados durante a noite de ontem. O corpo foi reconhecido pela mãe, eu me assustei e deixei a caneca de leite cair ao chão. Era o nome dele.

Corri para o telefone, para tentar falar com a mãe dele... Mas não dava linha... O telefone falhou... Fiquei desesperado... Até que eu percebi... Eu realmente havia desconectado o cabo do telefone antes de dormir...

Rafael Albuquerque

Em Meio À Tempestade



Ele não estava à procura de um novo amor. Ela não queria fazer aquele curso. Ele, sozinho; muito bem, obrigado. Ela, dona de uma beleza singular e inexplicável. Não viam muito mérito um no outro. Ele fez de tudo para resistir a essa moça tão bela. Mas, como? Como lutar contra uma mulher tão exótica? Ele também não sabia a resposta. E não resistiu.

Ela lhe fazia tão bem... Fazia com que ele se sentisse poderoso. Vaidade.

Romance. A vida era uma poesia. Eram muito diferentes e isso causou muitas discórdias. Ele, pura desorganização; ela, ciúme sem limite. Brigavam muito. Houve tragédias que jamais poderiam ter acontecido. Mas, seu amor por ela se tornou tão grande, tão inimaginável que nada no mundo serviria para medi-lo. Esse amor o cegava. Cego, a ponto de esquecer as ofensas, as feridas. Ele a amou, e a nada mais.

Ele lhe fazia várias demonstrações públicas de carinho. Confissões que não eram retribuídas. Ele se entristecia com freqüência por isso. No entanto, sentia que ela o amava, e isso já era o seu paraíso. Acreditou que ela fosse uma pessoa boa. O céu o esperava do outro lado. O céu dele era qualquer lugar do mundo, desde que estivesse com ela.

Mais brigas, mais ciúmes e mais amor... Ela decidiu manter-se longe dele. A união perigosa poderia fazer mal aos dois. O estranho, é que ela fazia de tudo para ferir o rapaz. Até mesmo uma tentativa de suicídio totalmente inexplicada. Ele ficava “com o coração na mão”.

Esses e outros atos impensados daquela mulher tão amada fizeram o casal se afastar mais a cada dia.

Mas ele, amando aquela mulher mais que a si mesmo, não se importou com o que pensariam. Foi atrás dela. Voltaram a ficar juntos algumas vezes, mas as brigas não cessavam. Mas já era claro para todos, menos para ele, de que ela já não o queria mais. Fez de tudo para que o rapaz perdesse a paciência... Tudo.

Com amor, já desgastado, ele chora. Perde o emprego, acaba conseguindo um outro, longe do prazer de sua profissão. Agora, ele trabalha durante os três turnos. Chega em casa morto, e, ainda, trabalha em casa. Suaausência fora sentida por ela. Mas ele não poderia pensar em perder nenhum dos empregos.

A necessidade cresce. Sai do seu apartamento para dividir outro com um amigo e, assim, diminuir os gastos. Ainda não tem dinheiro para manter uma família. Mas nunca desistia. Sempre sobrava mês em seu salário. Sua disposição para a vida minguava a cada minuto do seu dia. Precisava do apoio, e assim como não o deu, não o recebeu. O rompimento do relacionamento foi inevitável.

Ele não suportou aquilo que o corroia por dentro. Fez de tudo para reconquistá-la. Mas já era tarde demais... Aliás, há muito tempo já era tarde demais. O amor dela sempre fora efêmero, e a esperança dele era a de que isso pudesse mudar. Não mudou.

Tempo passou e ela conheceu outra pessoa. Seu primeiro ato foi ligar e dizer tudo que estava acontecendo. Ela está enamorada. Ele chora como criança, mas sem que ela perceba. A notícia o corta como navalhas. Mas, ele nada pode fazer...

Porém, o namoro não vingou. O triste coração leviano liga para ele novamente aos prantos. E ele, néscio, estava lá para ajudá-la.

Voltaram a sair... Flores e pedidos de casamento em seu ato mais ousado, com direito à música e muita gente presente num local muito requintado... Nada funcionou. Ele era a esperança. Ela, a indiferença. Indiferente e com o coração aberto. Conhece várias pessoas. Ele, descrente, começa a sair sozinho... Mas, em momento algum, tirava-a da cabeça. E, num maldito dia, ele resolve passar em frente à casa dela para mais uma surpresa. Mas fora surpreendido. Ele a vê dentro de um carro desconhecido, beijando outro homem.

Se ele imaginava que com ela conheceria o céu, conheceu o inferno. Sim, o inferno era ali. À porta da casa dela.

Em seu carro, ele, lentamente, pega o rumo de casa. Soluçando de chorar, briga sozinho. Pedia para que o mundo não o odiasse por amá-la. Pois ele mesmo já o faz suficientemente. Olhando pra cima, diz:

— Um dia, Ele saberá como me sinto.

Acelera o carro ao máximo. Quanto mais rápido o carro, mais gritava consigo mesmo. Não se importa com a curva que se aproxima.

Um muro branco e sólido se aproxima. De repente, escuro. Só escuro. “ Morri?” pensa desnorteado. Mas uma voz doce e estranha, como se ecoasse, responde que não.

— O que aconteceu? – pergunta em meio a soluços naquela escuridão total.

— Ouvi tudo o que disseste dentro de seu veículo.

— Eu bati o carro?

— Sim, bateste.

Ao pronunciar tal frase, fez-se então o ar mais frio, com um feixe de luz que apontava para a voz... Um anjo com asas prateadas enormes que começaram a brilhar naquele negrume. E então, a criatura diz:

— Terás uma nova chance. Um único pedido. Sabedoria te é aconselhada. Nova dádiva não há de acontecer.

Ele, atordoado, sem saber realmente o que acontece, abre os olhos com dificuldade.

— Verás quão nobre é a vontade Dele. Peça o que quiser.

— Qualquer coisa?

— Sim

Ele, cético, apenas fecha os olhos e balança a cabeça...

Ele não estava à procura de um novo amor. Ela não queria fazer aquele curso. Ele, sozinho; muito bem, obrigado. Ela, dona de uma beleza singular e inexplicável. Não viam muito mérito um no outro.

Ele fez de tudo para resistir a essa moça tão bela. Mas, como? Como lutar contra uma mulher tão exótica? Ele também não sabia a resposta. E não resistiu.

Rafael Albuquerque

Conto para a minha morte

Como eu poderia imaginar? Meu sonho sendo realizado logo ali. Sempre fui o melhor zagueiro da escola. Foi em meio a uma partida contra o pessoal da rua de cima que ele apareceu. Terno cinza, camisa azul e o sapato muito bem engraxado. Ele dizia que eu era o melhor jogador do bairro e que, no futuro, poderia ser muito rico e ajudar toda a minha família.

Chego em casa e logo conto aos meus pais. Ele era representante de um grande clube estrangeiro de futebol. Dizia que o time tinha um ótimo campo de treinamento, com a melhor estrutura para cuidar de seus atletas até que fossem mandados para o time principal – fora do país.

Não sei se fui eu ou o gordo cheque que deixou em posse de minha mãe, mas concordaram que seria ótimo para o meu futuro. O senhor de terno ainda frisou que o clube era rico e que qualquer correspondência pedindo dinheiro seria falsa. O que deixou minha família ainda mais tranquila.

Uma semana arrumando as coisas, fomos num lindo avião – primeira viagem de avião, já com quatorze anos. Poucas horas até o destino e um luxuoso carro nos esperava. Tinha de tudo dentro desse carro, até TV. Quase não acreditei quando chegamos. Um lugar lindo, com várias piscinas e um gramado bem verde. Ele me levou até onde será o meu quarto e, com um forte abraço, desejou-me boa noite e disse que os treinos começariam pela manhã. O quarto era um sonho. Eu tinha TV e uma geladeira só pra mim.

Quando o sol nasceu, alguém bate à porta e me guia até o vestiário. Cerca de trinta garotos tomando banho e comentando como será o treino. Diziam que sentiam a falta de um bom zagueiro, já que o que jogava com eles tinha sido convocado para o time principal, fora do país. Eu não conhecia ninguém, então, não disse nada.

Todos prontos e, logo no primeiro dia, deram-me o colete de titular. Todos estranharam. Tomei minha posição e viram que eu seria o novo zagueiro. Vencemos o jogo e, em poucos dias, os garotos já diziam que o antigo zagueiro não fazia mais falta.

No vestiário, após algumas de nossas vitórias, sobre o time reserva, todos comentavam que o antigo zagueiro tinha se dado muito bem e, que o sonho de todos ali era ser chamado para o time principal. Todo mês, um jogador era chamado e outro era contratado pelo “olheiro”.

Seis meses depois, jogando o melhor que poderia e vendo meus amigos sendo enviados para o time principal, chegou a minha vez. Lembro-me como se fosse ontem – um senhor careca, com uma prancheta na mão. Nem acreditei quando o ouvi dizer o meu nome completo.

Fui levado para a sala do chefe. Ele era horrível. Um senhor bem magro, com um chapéu de vaqueiro e uma fivela enorme. O careca me deixou lá com ele e percorreu o logo corredor de volta para o vestiário.

Nisso, aquela figura medonha se levanta e me oferece balas. Neguei e disse que não gostava de doces. Ele sorri, aproxima-se da geladeira – enorme para aquele escritório – tira um tipo de salgado e diz que foi feito com uma carne bastante especial. Comi e fiquei maravilhado com sabor. Ele me chama para jantar, no escritório tinha uma bela mesa posta para três. Outro empresário chega, Põe o guardanapo no colo e elogia minha forma física. Eles me olhavam de uma maneira estranha. Olhos brilhantes e bocas banhadas em saliva. Um delicioso Strogonoff é servido. Comi demais, como há muito não o fazia. Já o vinho que ofereceram, eu só fingi beber, pois não gosto de álcool. Disseram que eu teria uma noite muito especial, já que seria a última com eles.

Uma limusine me esperava logo após o jantar e me levou para uma casa enorme. O motorista disse que me pegaria ao amanhecer, para me levar ao aeroporto.

Entrei naquela casa e fui conhecê-la. Com móveis modernos e de muito bom gosto, liguei a TV gigante e fui até a cozinha. Comi um pouco de um salgado de carne e adormeci na sala, em frente ao programa de esportes que passava naquele horário.

Acordei com passos chegando perto de mim. Embora meio sonolento, olho e vejo que é o chefe que se aproxima com aquele empresário. Eles me olhavam e perguntaram o que eu fazia acordado. Eu pedi desculpas, ainda estava cansado, pois ainda era madrugada. Eles me levaram para o quarto, fecharam a porta ao sair, mas os ouço comentando:

- Ele não tomou o vinho?

- Tomou, eu vi.

- Então, vamos ter que fazer como fazíamos antigamente.

- Temos que nos cuidar para que a carne não fique dura.

Não entendi esse último comentário, mas vi que tinha que sair dali o mais rápido possível. Abri a porta vagarosamente, eles estavam de costas, ao fim do corredor. Era a única saída, eu tinha que passar entre eles. Aproveitei-me a ótima forma física e da experiência como zagueiro, corri o máximo que pude, batendo no mais magro (claro!), derrubando-o violentamente. Eles me perseguiam, mas não conseguiam me alcançar, porém, toda a casa estava trancada, ano adiantava correr o tempo todo. Cedo ou tarde, eu me cansaria. Corri em direção à cozinha, procurei um lugar pra me esconder. Passando pela cozinha, passando pela dispensa, tinha uma porta de metal. Abri e entrei. Ao acender a Liz, vi o que parecia um açougue. Facões, cutelos e outras lâminas. Abri o que parecia ser um freezer e entendi tudo. Pernas, braços, mãos...

- Você gostou do Strogonoff, filho? – eles gritavam por de trás da porta trancada de metal.

Quando ele me perguntou isso, tive uma vontade incontrolável de vomitar. E ali, eu fiz. Vomitei e chorei por horas. Eu sabia que eles ainda estavam atrás da porta. Munido de facão e cutelo, resolvi sair. Limpei o rosto, franzi a testa e abri a porta. O cutelo partiu o crânio do primeiro que eu vi, já o facão, encontrou os órgãos da região da barriga daquele empresário. Ainda com o rosto controlado, fui até a saída, desmontei a fechadura e fui embora. Procurei a delegacia mais próxima e contei tudo. O que acabou com o esquema do milionário canibal.

Hoje, já adulto, tenho minha própria agência. E sempre que eu tenho que, por algum motivo, despedir um funcionário, eu tenho a minha noite especial com o meu Strogonoff favorito.

Agonia


Já faz algum tempo. Não sei quantas horas. Mas já faz algum tempo. Sinto o ar descontinuar. Sinto dor nos meus braços, meus movimentos estão limitados. Como se eu estivesse numa pequena câmara. O ar está acabando. Tento gritar, mas a câmara é tão pequena que meu grito me ensurdece. Um colchão pouco confortável me rodeia. Panos. Panos por todos os lados. Tento me lembrar do que aconteceu antes d’eu chegar aqui. Eu estava doente. Eu estou doente. Lembro-me de algo grave, pois todos falavam comigo com pena. Eu odeio isso! Está tão ruim de respirar. Chamo por alguém, mas ninguém me ouve. Eu estou na horizontal, sinto isso. Bato três vezes no teto, mas é maciço atrás desses panos. Ninguém me ouve. Minha respiração é pesada. Tento respirar lentamente para que o ar dure um pouco mais. Mas é em vão. O ar já não é mais o suficiente. O oxigênio que nele continha já está no fim. Arranho com as unhas o acolchoado, tento atravessá-lo. Madeira! Tento arranhar a madeira, tento passar por ela, vejo que já não tenho mais unhas, elas ficaram no teto. Junto com as pontas de meus dedos. O ar está acabando. O escuro fica mais fosco. Mas foi só quando eu espirrei por causa das flores que notei que tinha sido enterrado vivo.