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quarta-feira, 8 de junho de 2011

O amigo



                    Eu pensei ter arrancado o cabo do telefone para que ninguém me incomodasse no domingo de manhã. Entretanto, o telefone tocou. Levanto-me sonolento para atendê-lo. Era um amigo de infância, já não o via há alguns meses, mas era um grande amigo. Sua voz estava estranha, a impressão era a de que seu queixo batia de frio. Eu perguntei se estava tudo bem, e ele respondia “agora está!”. Ele me disse coisas lindas, lembramos da nossa infância, quanta travessura... Ele me chamou várias vezes de melhor amigo. E, de fato, ele também era o meu melhor amigo. Já o conheço há mais de vinte anos, e isso é muita coisa quando se tem menos de trinta. Ele dizia: - Liguei para me despedir! – achei estranho, ele sempre morou nessa cidade, e me criticou quando eu disse que eu sairia. Perguntei por onde ele estava e ele respondeu que estava num lago.  Dizia que gostava muito de mim, que eu seria a única pessoa de quem ele se despediria. Pediu-me desculpas por tudo que havia feito, coisas de criança, eu nem me lembrava mais. Dizia que tinha sido ele que quebrara o meu taco de “Bete”. Mas não havia o que ser desculpado. Isso aconteceu há tanto tempo. Dizia também que ficaria com muita saudade, posto que eu seja o seu maior elo com o próprio passado. Ele disse que me esperaria por lá, mesmo quando falei que não poderia ser por agora, já que meu trabalho está bem pesado, e não tenho nem previsão de férias. Ele aceitou e disse, ao desligar, que me amava como a um irmão. Curioso, fazia muito tempo que não nos falávamos. Mais curioso ainda, ao soltar o telefone, lembrei-me de que havia sonhado com ele essa noite.
Peguei o jornal na soleira da porta e fui tomar o meu café. É assim que faço todos os domingos. Coloquei o leite na caneca e esperei a cafeteira fazer o seu serviço. Abro o jornal, uma foto me chamou muito a atenção e li a matéria. Aquele nome, eu não acreditei... O artigo descrevia um acidente que houve. Um carro foi encontrado bem ao fundo do Lago Cristal. O carro tinha um corpo dentro.  Eles foram retirados durante a noite de ontem. O corpo foi reconhecido pela mãe, eu me assustei e deixei a caneca de leite cair ao chão. Era o nome dele.
                       Corri para o telefone, para tentar falar com a mãe dele... Mas não dava linha... O telefone falhou... Fiquei desesperado... Até que eu percebi... Eu realmente havia desconectado o cabo do telefone antes de dormir...

Negra Madrugada




            Este conto, curto conto é, talvez, o mais horripilante conto até aqui. Acho que pelo fato de se tratar de uma história real. Eu tive que expor ao papel, ou enlouqueceria. Tudo começou há cinco noites, quando o meu telefone móvel tocou. Já passavam das três horas da manhã em uma segunda feira. O número registrado pelo meu identificador de chamadas era desconhecido pela memória. Ao atender ao telefone, um som estranho, não consegui distinguir o que era. Poucos segundos depois, o telefone desliga. Deito-me novamente, preocupado, pois não era uma hora normal para alguém me ligar.
                        Pouquíssimo tempo depois, o telefone, agora o fixo residencial, toca. Levanto-me sonolento, atendo e o mesmo barulho de antes, agora por outro lugar. Soa pelo telefone e me arrepia a nuca. Novamente o telefone fica mudo e desliga.
                        Às cinco horas da manhã tudo se repete. Primeiro o celular, depois o residencial. O mesmo som. Isso acabou com a minha noite. Permaneci acordado até a hora do trabalho, às sete.
                        Ao sair do trabalho (que passei todo o tempo pensando sobre minha madrugada infernalmente conturbada), entrei em contato com uma amiga que trabalha em uma companhia telefônica. Anotei o número registrado em meu telefone de chamadas recebidas e repassei a ela. Incrivelmente, ela me disse logo após a sua pesquisa: “Esse número não existe”.

Miss Etiópia


            
Ela era esplendorosa. A flor mais tenra dos jardins do céu... Sua cor negra e brilhante recheava os olhos de todos. De poucos amores, mas vários pretendentes. Todos a cortejavam. Sua formosura e simpatia contagiavam todos. Num concurso, foi eleita a mulher mais admirável da cidade. No mesmo ano foi indicada para representar a sua cidade em um concurso nacional. Venceu. Ela era a mulher mais bela do seu país. Em casa, muitos problemas. Fome, miséria, desnutrição do irmão e outros contratempos atrapalhavam a carreira da jovem e promissora moça. Dias e mais dias sem comer para conseguir juntar um pouco de dinheiro para chegar até a África do Sul para concorrer com as mulheres mais belas do continente. Venceu novamente. A fome e a miséria ainda atacavam o seu país. Para poder viajar para a Austrália, onde ocorreria o “Miss Universo”, foi preciso a ajuda aos vizinhos, além de ter de passar fome por ainda mais tempo. Seus pais trabalharam como loucos e comeram mal para conseguir pagar a passagem. A própria jovem moça comia ainda menos para juntar os trocados. Pena. Na Austrália ela não venceu. Acabou não agradando ao público, pois mesmo para os padrões, ela era magra demais.

Lágrima púrpura

            Eram grandes amigos. Ele, tudo sabia sobre ela. Ela, tudo sobre ele. Até mesmo de sua paixão incondicional. Este amor ocupou dois terços de sua vida. Tão puro, tão doce, uma inocente paixão. Mas, entre eles nada poderia haver. Ela era um exemplo de pessoa: racional ou profissional, e cultivava um namoro de quatro anos. Ele, um boêmio.

            Moravam distantes, viam-se somente quando ela visitava os pais, que eram seus vizinhos. Ela o procurava – conversavam sobre tudo. Ele se continha ao máximo para não beijá-la. Compôs uma música a ela, mas sabia que jamais teria retorno. Sua vida iniciou com ela e, certamente, terminaria sem ela. Ele a namorava nos seus sonhos.

           
Um dia, após horas de conversas, num passeio de carro – provocado pelo impulso do sentimento engarrafado há mais de dezesseis anos, a beijou. Seus lábios provaram uma tez jamais encontrada. A maciez de sua boca era muito mais doce que comparada a de seus sonhos. O tempo parou naqueles três segundos e só foi interrompido pela lucidez dela, que replicou – entrando a casa sem olhar para trás. Ele, que até aí, não acreditava que este sentimento pudesse amadurecer, mas amadureceu.

Eufórico, cantarolava como criança, sorrindo e amando ainda mais. Mandou-lhe vários e-mails, porém não foram respondidos, o que era atípico. Encontraram-se virtualmente em plena madrugada. Ele, feliz, a perguntou como estava. Ela apenas escreveu a frase “não era pra ter acontecido”. Seu sorriso escorregou ao chão naquele momento.

           Ele se desculpou. Disse que jamais se repetiria. E o que ele mais temia, aconteceu... Ela se afastou.
          Este sentimento explodia em seu corpo e eles mantinham-se distantes

Este era o seu enigma. A sua dor insuportável. O seu fantasma interno. O seu próprio “armagedon”.

            Ficaram tempos sem notícias um do outro. Chorava quando se lembrava dela ou mesmo ao ouvir seu nome.
 Tomou coragem e começou a dedicar seu tempo mais à sua vida profissional. Algo ligado às artes. Escreveu um livro e montou uma banda. Um ano após o encontro que surgiu o beijo, foi a data do lançamento de seu livro, que estava presente também sua banda, que tocou a canção que havia feito a ela, ausente naquela noite especial.

Eis que, de repente, em meio à multidão, aparece junto com o namorado, aquela linda garota, parabenizando-o e pedindo que autografasse seu livro, para lê-lo e guardá-lo com carinho. A música ainda não terminara, mas notava em seus lábios as palavras compostas que ambos sabiam a quem dirigia. Uma tímida lágrima escorreu do rosto do autor e caiu sobre o seu autógrafo. Manchando assim a tinta ainda fresca da dedicação que acabara de escrever. A mancha formou um coração sobre as palavras poéticas, especialmente a ela... Ele nunca mais a viu...

Caminhando sobre a Lua


Era um jovem bastante criativo. Viajava muito e, por isso, aprendera várias línguas. Seus pais sempre se preocupavam em suas viagens, pois, às vezes, demorava muito pra voltar. E sempre que voltava trazia grandes novidades dos lugares por onde passava, mas seus pais não o ouviam, não se interessavam por suas histórias. A preocupação era tanta que nem dava tempo de dar a atenção ao que queria dizer sobre tudo.

Conhecia bastantes pessoas nessas viagens, mas achava que não era o suficiente, pois seus pais sempre lhe apresentavam novos amigos que queriam saber sobre essas viagens. Contava-lhes tudo o que acontecia, com bastante entusiasmo. Não sabia o porquê, mas estes mandavam tomar remédios, mesmo não sentindo dor alguma. E dizia que seria muito perigoso se ele não os tomasse. Esses remédios faziam perder a vontade de viajar. Aliás, tirava a vontade de fazer qualquer coisa. Ficava triste num canto do quarto. Sem estar viajando e sem estar ali. Tinha muita vontade de ir à Lua. Mas esses remédios lhe tiravam o ânimo.


Certa vez, ele fingiu tomar os remédios. E, assim o fez por mais dois dias. Sua alegria voltara, mas sabia que não poderia contar pra ninguém. Estranho, mas eles não gostavam de vê-lo assim. Então, ele resolveu viajar. Realizar o seu grande sonho de infância. Conhecer a Lua. E ele o fez. Fez a sua tão esperada viagem. Ele conheceu a Lua. Uma viagem tão espetacular, que jamais quis voltar. Jamais voltou.

Azul Real


                   Casados já há algum tempo, ele sempre fora apaixonado pela esposa, que se distinguia pela beleza dos olhos. Brigavam muito, porém, sempre, sempre que ele se deparava com aqueles olhos seu coração amolecia.
Jamais discordaria do que ela o propusesse. Ao lado da mulher, tudo era iluminado. Ele sempre fora pacífico, amável e pulcro; ela, amarga, déspota; tudo deveria ser do seu jeito ou estaria tortuoso. Chegava em casa, já no alvorecer, normalmente embriagada, e insultava-o. Ele se irritava, mas bastava sentir a presença daqueles lindos olhos cor de anis, que tudo se resolvia e estava bem.
                   Certa vez, chegara com marcas pelo pescoço e escoriações nos braços. Ele achou estranho e quis saber o que houve. - Ela, então, desatarraxou o cabo de metal do rodo que estava na copa e bateu-lhe várias vezes, sem piedade. Enquanto o surrava - gritava: “Não é da sua conta... Você não manda em mim...”. Ele, mais forte, segura o cabo com uma das mãos e com a outra a esbofeteia. Irado, prepara-se para golpear a mulher de sua fábula. Ela amedrontada, olhava-o com espanto, já que o marido nunca ousara violência. E ele, encantado por aqueles lindos olhos azuis... pede-lhe desculpas e cai em prantos...
                   As brigas eram constantes, porém certo dia, assistindo a um programa de TV, chega a mulher e a posiciona na frente - jogando sua bolsa sobre o sofá. Austera - grita e ofende-o com palavras rudes - dizendo traí-lo várias vezes por semana com diversos homens...
                   Ele, gentilmente, sem se preocupar com o que ela está dizendo - oferece-lhe uma colher do sorvete que está tomando. Ela estapeia borrando-o de creme. Ele, ciente do acontecido, lambe a colher com raiva e olhos de fogo. Aproxima-se dela com o pote de vidro onde estava o sorvete e acerta-o na fronte desacordando-a
                   Terno, abre o olho dela com paciência e posiciona  com a colher abaixo do globo ocular e retira aquela esfera tão amada por ele, separando-as por completo do corpo. Ela ainda respirava e ele iniciou a desmembrar seu corpo com uma afiada faca de cozinha. Tudo fora cortado em pedaços menores e colocado no congelador. Sua esposa, aos poucos, se consumia no estômago das visitas que saboreavam um delicioso strogonoff - sua especialidade - servido com um vinho do bom... Seus olhos foram postos sobre o seu criado-mudo. Apontados para ele dia e noite. Agora, sim: "ela só tem olhos para ele...".